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conversa com marcatti

entrevista por Nemo Nox

Marcatti j faz parte da histria dos quadrinhos brasileiros, responsvel por uma srie de publicaes underground durante toda a dcada de oitenta. Agora ele est de volta, com o livro Restolhada (Editora Opera Graphica, 2000) e com a revista Frauzio (Editora Escala, 2001).

Burburinho - O que importante numa histria em quadrinhos? Como voc constri as suas?
Marcatti - O conjunto completo e equilibrado "histria em quadrinhos". Se a hq tem muito peso no desenho e pouca importncia no texto ou roteiro, fica uma sensao de coisa incompleta, meio manca. Uma boa hq aquela impossvel de ler sem ver os desenhos e impossvel de entender sem ler. Quando fao minhas histrias, comeo sempre de um fato especfico. O que seria o assunto principal, o acontecimento-chave. O roteiro da histria comea a surgir quando fao duas perguntas bsicas: "o que originou esse fato?" e "quais as conseqncias do que ocorreu?". Como os fatos tm sempre seus protagonistas, fao anotaes paralelas da vida, dos costumes, de cada um dos envolvidos. Quanto mais detalhes pessoais de cada um eu conseguir agregar, mais recursos eu vou ter na hora de desenvolver o roteiro e mais humanizados os personagens sero. Coloco tudo isso em forma de tpicos obedecendo a seqncia dos fatos e fao uma medio de tempo. Anoto, em cada tpico, seu grau de importncia dentro da histria e atribuo valores de extenso com unidades de pginas ou quadrinhos. Isso tudo para que eu saiba, de antemo, o nmero final de pginas da hq, e o tempo que cada fato vai tomar dentro do desenrolar da histria. A entra a importncia de ter feito uma descrio alongada de cada personagem. Pois preencho esses tempos com os detalhes que consegui acumular sobre cada um para tentar criar uma fluncia mais realista, para dar mais sustentao a cada indivduo da histria.

Burburinho - Seu trabalho confessadamente inspirado em Gilbert Shelton. Ele o seu heri? Quem mais est na sua galeria de dolos?
Marcatti - Na revista do Frauzio, tenho colocado minhas principais influncias na ordem de importncia em que eles afetaram meu trabalho. O principal mesmo o Shelton. Depois, vem Basil Wolwerton, Harvey Kurtzman, Hunt Emerson, Wolinski.

Burburinho - Que influncias voc tem fora dos quadrinhos? Filmes? Livros? Quem?
Marcatti - Alm do universo hq, me afetam muito os trabalhos de pessoas como Frank Zappa (suas letras), Henry Miller, Werner Herzog e Otto Preminger.

Burburinho - Entre os clssicos dos comics underground, existe uma certa rixa entre os fs do Robert Crumb e os do Gilbert Shelton. O que os torna to diferentes um do outro?
Marcatti - No sei se chega a ser uma rixa. Conheo pouca gente que no gosta de um ou do outro. Eu pessoalmente no gosto do tom paternalista que o Crumb adota ao desenvolver suas histrias. Chega a parecer messinico, inquisidor. O Gilbert Shelton mais relaxado, menos compromissado. Acho fundamental que um autor, seja ele de hq ou qualquer outro meio, no se leve muito a srio. Se o autor se exacerba em seu trabalho, acaba ocorrendo o que eu chamo de sndrome de Renato Arago. O sujeito comeou a pensar que ele tem muita responsabilidade sobre o futuro das mentes infantis, que ele tem um papel fundamental na educao das crianas do Brasil... Ficou arrogante e, o que terrvel para um humorista, perdeu a graa.

Burburinho - Seu trao inconfundvel. O que voc acha dessas correntes de hq to na moda, onde difcil saber quem desenhou o que, como a dos super-heris musculosos estilo Marvel ou a das criaturinhas de olhos enormes estilo mang?
Marcatti - No acho nada. Como em todas as formas de comunicao, existem os autores que fazem seu trabalho exclusivamente pessoal e personalizado, e esses atraem para si opinies slidas. Sejam de admirao ou de desaprovao, as opinies so concretas e sempre trazem em seu bojo o carter de respeito. Por outro lado, existem os que produzem hq. No so menores nem maiores em importncia. So diferentes. Executam seus desenhos ou suas histrias como um produto. Se estamos procurando personalidade e viso unilateral, no so esses que vo fornecer. Mas so esses autores que produzem entretenimento puro. Nenhum demrito! Tm seu papel na popularizao da linguagem. O mesmo seria esperar que eu, ou qualquer autor, fizesse produtos de consumo rpido. Cada um tem seu lugar e sua forma.

Burburinho - Como editor de revistas nanicas, voc controlava todo o processo de produo e distribuio. Isso acabou influindo de algum jeito, positivo ou negativo, na prpria criao dos quadrinhos?
Marcatti - Produzir minhas prprias revistas no era uma opo, era falta de opo! Se no fosse assim, jamais teria produzido tantas pginas e tantas revistas. Mas, como conseqncia, ainda que minha produo fosse extremamente marginal, desenvolvi um certo sentimento editorial. Passei a entender mais claramente todos os mecanismos envolvidos na produo cultural. Me tornei mais "legvel". Menos hermtico ao leitor. Aprendi a lidar melhor com a comunicao em duas vias: autor-leitor.

Burburinho - Voc conseguia ganhar dinheiro com as revistas? Ou ao menos pagava os custos para continuar produzindo?
Marcatti - Jamais! A primeira vez que algum me pagou por quadrinhos, e eu no tive de pagar mais do que recebi, foi a Editora Escala para fazer o Frauzio. Com minha mquina offset, era mais caro fazer do que aquilo que eu recebia por suas vendas.

Burburinho - Suas revistas tinham ttulos como Refugo, Lodo, Mijo... Qual a razo dessa escatologia?
Marcatti - Com as histrias que eu fao, no poderia ser de outro modo. J imaginou se elas chamassem Carinho, Alegria, Jujuba... ?

Burburinho - O underground foi absorvido pelo mainstream. Gente como Angeli, por exemplo, que produzia R Bordosas e Bob Cuspes, hoje est trabalhando em grandes veculos. Voc acha que no processo houve uma pasteurizao dos quadrinhos? Ou ainda seria possvel ser underground em pleno sculo XXI? uma questo de postura ou a hq "alternativa" s falta de oportunidade no mercado?
Marcatti - Na dcada de 70 e 80 eu responderia categoricamente: hq underground tem que ser marginal. Mas nenhum conceito deve ser absoluto. Acho ducaralho estar vivendo numa poca em que South Park seja produto de consumo em massa dentro do mesmo tipo de mercado que consumiu Walt Disney e Snoopy. Seria, ento, hipocrisia ou teimosia no pensar que Gilbert Shelton poderia vender chiclete, fralda descartvel, miojo lamen e ainda ser o forte e contundente Gilbert Shelton. Posso estar errado, mas no quero me furtar de estar nesse universo experimental.

Burburinho - Por que voc parou de se auto-editar?
Marcatti - Chegou um momento em que no fazia mais sentido fazer mil exemplares de uma revista que leveva quatro anos para se esgotar. Os filhos crescendo e as dvidas crescendo dez vezes mais, era produzir gibis ou comer.

Burburinho - De que voc vive?
Marcatti - Tenho um pequeno estdio de criao, produo grfica e multimdia. Atendo clientes na rea de marketing e formao qualificada.

Burburinho - Como voc comeou a trabalhar com computadores? O seu trabalho mudou muito com a entrada em cena da informtica?
Marcatti - Esses merdinhas dos PCs entraram na veia! Para mim, no passam de meras ferramentas adicionais. Mas, puta que pariu, que ferramentas! Sem contar que a informtica pode ser ainda muito cara, mas jogou por terra todos os custos de industrializao de materiais grficos. S para dar um exemplo, a confeco dos fotolitos de uma capa de revista custava entre 400 e 600 dlares antes da informtica. Hoje no ultrapassa 100 reais.

Burburinho - E os jogos, voc os v como uma extenso do seu trabalho em quadrinhos ou simplesmente uma nova vertente?
Marcatti - Ambos. Jogos so uma nova vertente, uma nova linguagem. A trajetria dos jogos para computador e mais recentemente os jogos de console muito semelhante a das histrias em quadrinhos na dcada de 30 e 40. Salvas as propores numricas de tiragens e faturamento, os jogos enfrentam as mesmas resistncias, tabus e preconceitos que os quadrinhos enfrentaram naquela poca (enfrentam at hoje, diga-se). Eu acredito que os jogos so uma forma de comunicao paralela, auto-suficiente e prpria. Existem os jogos impessoais, entretenimento puro e aqueles que so autorais, fortes. Caso contrrio, como explicar os fenmenos Tomb Raider e Final Fantasy? Rompendo esse vu de preconceito, os jogos ganharo seus ttulos segmentados. Como ocorreu com os quadrinhos, chegaro os jogos especficos e qualificados por faixa de pblico. Meus jogos tm essa premissa. Mas estou sofrendo com as dificuldades dessa migrao. Quero fazer jogos sem sotaque de hq mas que preservem minha maneira de falar.

Burburinho - Que recepo teve o livro Restolhada, que uma retrospectiva das suas histrias clssicas?
Marcatti - Como uma forma de registro histrico consolidado, o Restolhada absoluto. Ou por mostrar todas as fases do meu trabalho, ou, no mnimo, para reunir num s volume o material que estava disperso em publicaes que, convenhamos, so bem difceis de manter reunidas numa coleo.

Burburinho - E o Frauzio, emplaca?
Marcatti - Tem todos os fatores para dar certo. Comportamento do mercado atual, preo, distribuio... Mas no Brasil o mercado editorial to imprevisvel e misterioso que coisas inexplicveis acontecem sempre. Se emplacar, nunca saberemos o porqu. Se no vender, ningum vai conseguir explicar. Estou torcendo pela primeira hiptese!


pensamentos despenteados para dias de vendaval
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