burburinho

o senhor dos anis

livros por Ricardo Silva

Esquea por um momento tudo o que voc tem lido, ouvido e discutido sobre a verso para o cinema de O Senhor dos Anis. Esquea que voc j leu algum livro de fantasia, ou viu filmes sobre o tema, ou mesmo que j jogou algum videogame ou RPG do tipo em sua vida inteira.

Esqueceu? Bom, porque para falar da obra de J.R.R. Tolkien importante ter em mente que ali que todas as coisas mencionadas no pargrafo anterior tiveram sua origem: antes dele, elfos, anes e magos eram ou personagens de contos de fadas para criancinhas ou peas eruditas a gosto dos estudiosos de mitologia antiga, sagas e epopias pouqussimo divulgadas, a maioria em lnguas mortas ou moribundas conhecidas de meia dzia de especialistas. E justamente entre eles que encontramos Tolkien, e neste ambiente de rigor acadmico que sua obra vai tomar forma.

O Senhor dos Anis (The Lord of the Rings, originalmente publicado pela editora inglesa Allen & Unwin em 1954) comeou como uma brincadeira lingstica de Tolkien, especialista em lnguas antigas: ele criou poemas nas lnguas lficas que inventou (quenya, o alto-lfico, baseado no finlands, e sindarin, derivado do gals), e os lia para os amigos de Oxford, um grupo de escritores conhecidos como "the Inklings" e que inclua o poeta Charles Williams, o escritor Owen Barfield, e o polivalente C.S. Lewis, criador do ciclo de Narnia, que teve impacto similar obra de Tolkien (embora esteja meio esquecido ultimamente - quem sabe agora, com a volta de O Senhor dos Anis ateno do pblico, Lewis volte a ser lembrado?). volta destes textos, como a prola em volta do gro de areia, O Senhor dos Anis foi crescendo e tomando forma, mesclando o interesse de Tolkien pelos mitos e cultura celto-saxnio-nrdica e sua devoo ao catolicismo (ingredientes menos incompatveis do que pareceria primeira vista).

Ningum poderia imaginar que o livro teria a ampla divulgao que teve no final dos anos cinqenta e comeo dos sessenta, nascida da propaganda boca-a-boca dos leitores recm-convertidos ao culto do Anel a seus parentes, amigos e vizinhos, que originou a agora clebre frase "o mundo se divide em dois tipos de pessoas, os que leram O Senhor dos Anis e os que ainda no o leram".

Os fs mais radicais batizaram seus filhos com nomes como Pippin e Arwen, aprenderam a falar sindarin e a escrever canes em quenya, entre outras excentricidades. Os outros, mais comedidos, simplesmente se apaixonaram pelo livro e passaram a sonhar com a TerraMdia (MiddleEarth) e seus habitantes, enquanto viviam suas vidas comuns.

O foco da histria, mais do que nas batalhas ou nas cenas de ao, est nos conflitos internos dos personagens: Frodo recebe o fardo de portar e destruir o Um Anel (The One Ring), contra a tendncia caseira e pacfica dos hobbits, e deve lutar contra a tentao constante que o Anel causa em quem o carrega: us-lo e, lentamente, ser corrompido por ele. Galadriel, rainha dos elfos de Lothlorien, quase sucumbe, quando confrontada com ele. O prprio mago Gandalf se recusa a ter contato com ele, temendo cair sob sua influncia. O Um Anel poderosssimo, e h quem ache que seria a arma perfeita contra Sauron, mas esta arma pode facilmente se voltar contra aqueles que tentarem us-la, e assim muitos devem arriscar suas vidas para a sua destruio e a derrota total do Mal (pelo menos por um tempo: Gandalf, realista, diz que "no nos cabe fazer frente a todas as mars do mundo, mas sim zelar por aqueles breves anos que esto sob nossa responsabilidade" - ou seja, a cada gerao cabe uma parte da grande batalha).

Muitos crticos tentaram ver em O Senhor dos Anis uma alegoria da Segunda Grande Guerra - Sauron seria Hitler, comandando suas hordas de orcs/SS na devastao da TerraMdia/Europa, e apenas os Povos Livres/Aliados, entre eles os hobbits/ingleses, poderiam derrot-lo - mas Tolkien sempre negou categoricamente essa interpretao, declarando abominar metforas e alegorias de qualquer tipo. claro que os eventos de sua poca iriam influenci-lo, mas ele tinha outras idias em mente ao escrever sua obra.

So temas clssicos da civilizao ocidental, relevantes ainda nos dias de hoje: o confronto do bem contra o mal, a responsabilidade individual face a esse confronto, os valores bsicos da amizade, lealdade e coragem como armas neste duelo, as experincias universais do medo, dor, dio, tristeza, dvida, alegria, compaixo e outras - os aspectos mais mgicos da obra de Tolkien so meramente o veculo que ele encontrou para express-las com o mximo de vigor, profundidade e ressonncia emocional, porque bem sabia que, como diz uma velha histria, "a verdade melhor recebida quando vestida com as roupagens do mito".

E, como ocorre nos grandes mitos, a vitria tem um sabor agridoce: o mal vencido (no fim do terceiro livro), mas s custas do antigo modo de vida - a TerraMdia passa da Terceira para a Quarta Era, o longo reinado dos elfos chega ao fim e a eles cabe apenas a partida para o antigo reino de Valinor, para alm do Grande Oceano Ocidental - e mesmo sabendo que seus dias esto contados, os reinos lficos participam ativamente da batalha, cientes que a derrota ser no apenas o fim deles, mas o de todos os povos livres (anes, humanos, hobbits). Esta a tentao de Galadriel: tentar usar o Anel e seu poder para curar o mundo e prolongar a paz e a beleza do seu reino nas florestas de Lothlorien, no importando o preo para os outros povos, mas ela consegue afastar-se da tentao e dizer "Passei na prova... diminuirei, irei para o Ocidente e continuarei a ser Galadriel".


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