burburinho

conversa com istvan sandorfi

entrevista por Nemo Nox

Sandorfi um dos maiores expoentes da pintura figurativa de hoje, explorando o realismo fotogrfico e o hiper-realismo com uma tcnica invejvel. Seu discurso por vezes to rebuscado quanto seu pincel, mas o que ele busca uma arte sem subterfgios, com apelo direto ao subconsciente.

Burburinho - A que voc atribui a volta ao figurativo na arte contempornea? O abstracionismo deixou de ser to interessante?
Istvan - Esse retorno ao figurativo um retorno s origens, um retorno aos fundamentos da pintura. Para sobreviver, toda atividade necessita pontualmente se renovar bebendo em suas fontes. uma reao de sobrevivncia numa poca em que a arte est estrangulada por uma cultura de especulao. A abstrao um desvio da arte figurativa, com o prprio termo "abstrao" vindo de "abstrair". O objetivo apagar o componente essencial da pintura, que a representao, deixando a figura de lado para alegadamente poder veicular o esprito do artista. S que esse esprito no pode ser representado adequadamente se o artista no tem a figura para lhe sugerir algo. Mas mais fcil ser um bom pintor abstrato que um mau pintor figurativo. O figurativismo exige rigor, uma certa humildade e uma grande concentrao, caractersticas desagradveis para o pintor tomado pela pretenso. Os pintores verdadeiramente figurativos so raros, e isso se deve sem dvida a esse interesse ter sido transportado para a fotografia, elevada a arte. Vai haver um desvio para a fotografia abstrata? A abstrao no uma coisa nova e no uma inveno contempornea. Uma paleta uma pintura abstrata, at um rolo de papel higinico pode ser pintura abstrata. A nica novidade da nossa poca fazer a abstrao passar por arte.

Burburinho - At que ponto o seu trabalho teve influncia do surrealismo?
Istvan - As influncias mais fortes so as influncias inconscientes. Demoram mais a ser digeridas. por isso que pinto em isolamento, me afastando de qualquer referncia cultural. O surrealismo um movimento essencialmente potico. Pretende implicitamente conhecer o real para se propor a ultrapass-lo, o que uma mentira elegante. Se eu incluo nos meus quadros alguns elementos de iluso, por causa do realismo e no por adeso ao surrealismo. A idia incitar uma reao crtica em vez da percepo visual, que alimente uma confuso entre o objeto e a realidade efetiva. As pessoas levam ao p da letra o que a viso apreende, sem considerar os mecanismos subjetivos da percepo. Tento ento sugerir, com a ingenuidade dos meus meios, que o materialismo no responde somente a uma utopia mas tambm passvel de iluso.

Burburinho - Que artistas voc admira e quais voc considera como influncias?
Istvan - Respeito todos os artistas sinceros e desprezo as pretenses de todos que associam seu talento s cobotinagens culturais efmeras. Um artista autntico tem o corpo de um arteso e a mente de um filsofo. Ele nunca se considera um artista, e v sua "arte" como uma reao ntima a acontecimentos que nada tm de artsticos. No existe arte sem execuo, por isso a obra que admiramos, no o artista. Voc pode medir a fragilidade de um artista pelos desvios no seu trabalho. Aquele que se protege das tentaes de apropriaes estticas ou intelectuais prova pela sua constncia que no influencivel. Voc quer que as suas convices pessoais sejam induzidas pelos outros?

Burburinho - De onde saem as idias para os seus quadros?
Istvan - Do mundo como eu o vejo. O tema implcito nos quadros sempre o mesmo: um sentimento constante e idntico que tento transmitir a quem quiser e for receptivo. S os "pretextos", que so os modelos ou os elementos, mudam com cada tela.

Burburinho - Voc pinta a partir de modelos vivos ou de fotografia?
Istvan - Fao dezenas de fotos de cada modelo ou das naturezas mortas, sempre com a mesma iluminao, perto da mesma janela, o que me permite fazer combinaes diversas na composio dos quadros. Tenho ento milhares de diapositivos que projeto numa tela translcida a alguns metros do quadro e observo como se fosse um modelo vivo. Posso tambm pintar de dia ou de noite sem depender da iluminao, em solido total e sem incomodar ningum.

Burburinho - Por que os panos? Eles tm algum significado especial ou voc simplesmente gosta de pintar panos?
Istvan - Por que os panos? Talvez porque algumas das minhas modelos so pudicas. E tambm porque pintar panos exige um exerccio tcnico que me permite experimentar indefinidamente, porque para progredir eu me conveno que no sei pintar. Os panos so uma vestimenta atemporal que substrai a modelo de qualquer contexto preciso e me permite escapar da anedota da representao. Mas a escolha de modelo, objetos ou acessrios no tem significado simblico consciente. na atmosfera geral do quadro que reside o significado implcito.

Burburinho - Ser hngaro tem alguma influncia na sua arte ou voc se sente francs?
Istvan - Ser hngaro no um fator de influncia: no podemos ser influenciados pela prpria origem, porque no estvamos l. Mas minha infncia na Hungria foi impregnada pela opresso comunista e pela insurreio de 1956. Esses acontecimentos tiveram um impacto relevante em mim. Nunca tive confiana na autoridade dos "adultos" e sua pretenso de querer administrar o destino dos seus semelhantes. Sempre me senti hngaro, talvez ainda mais por no morar na Hungria. Se no volto para l, por receio de me decepcionar.

Burburinho - Voc acha que a arte pode mudar o mundo ou que somente uma forma de tornar nossas vidas mais agradveis?
Istvan - A arte no est destinada a provocar mudanas, mas a perpetuar a conscincia humana. O mundo muda sozinho, na continuidade da sua evoluo fatal e na sua lgica absurda. Sempre h quem queira mudar o mundo, prolongando a iluso. Acredito na fraternidade mas no na sociedade, e nem mesmo na civilizao, que sob o manto de um progresso tcnico escraviza a utopia com uma servido generalizada. Quanto mais progride a sociedade, mais regride a conscincia individual. A arte s uma distrao para os que no se fazem receptivos sua necessidade. Os animais, por exemplo, ignoram a arte, pois suas preocupaes so essencialmente prticas e pragmticas, limitadas s exigncias da sobrevivncia. O valor da arte reside na sua aprente inutilidade, por no ser um fator de sobrevivncia mas um reflexo da vida, em seu poderio original. A arte tem sua origem na meditao e busca seus recursos na instrospeco. Uma criana, por exemplo, faz seus primeiros rabiscos quando comea a refletir, a querer dar corpo ao seu pensamento, e as primeiras figuraes pr-histricas marcam o nascimento da conscincia da condio humana. A figurao indissocivel da reflexo, que ela acompanha e sustenta. A arte portanto um meio destinado a permitir a conquista do subconsciente, onde residem escondidas todas as verdades das quais somos o resultado. E enquanto o homem se preocupar com seu subconsciente estar preservando uma dignidade que o impede de ser um autmato servil ou um animal.


pensamentos despenteados para dias de vendaval
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