burburinho

o sacrifcio

cinema por Nemo Nox

Arredores de Estocolmo, 30 de abril de 1985. Primeiro dia de filmagem de O Sacrifcio (Offret). Andrei Tarkovski prepara uma cena de sonho, espalhando jornais velhos, fotos arrancadas de um livro e moedas estrangeiras sobre o cho gelado e lamacento.

A cmara dever movimentar-se mostrando estes elementos enquanto segue os passos de uma criana descala. Algum da equipe pergunta: "Tudo isto para simbolizar alguma coisa?" Tarkovski responde sorrindo: "Simbolizar? No me pergunte isso. Como eu poderia saber? a matria da qual os sonhos so feitos..."

Foi com a simplicidade misteriosa contida nesta resposta que Tarkovski escreveu e dirigiu seu stimo e ltimo filme, festejado em Cannes com o Grande Prmio Especial do Jri, o Prmio da Crtica Internacional, o Prmio para Melhor Contribuio Artstica e o Prmio do Jri Ecumnico. O Sacrifcio apresenta temas e questionamentos tipicamente tarkovskianos, mas com uma narrativa que lembra, em muitos momentos, o cinema de Ingmar Bergman (ser acaso o filme ter sido realizado na Sucia, contando com a presena de dois dos maiores colaboradores de Bergman, o diretor de fotografia Sven Nykvist e o ator Erland Josephson?). De qualquer forma, um fecho de ouro para uma carreira iniciada nos anos sessenta e tragicamente encerrada pelo cncer em dezembro de 1986.

Andrei Tarkovski nasceu em 1932 na cidade de Zavrozje, na Unio Sovitica. Filho do conhecido poeta Arsenij Tarkovski, cresceu em Peredelkino, vilarejo de artistas perto de Moscou. Antes de se decidir pelo cinema, Andrei estudou vrios outros assuntos, entre eles a msica, a pintura, a escultura e a geologia. Em 1954, ingressou na VGIK, escola moscovita de cinema, diplomando-se em 1960 com o filme O Rolo Compressor e o Violino.

Sua estria em longa-metragem aconteceu dois anos depois, com A Infncia de Ivan, ganhador de vrios prmios internacionais, entre eles o Leo de Ouro do Festival de Veneza. Tarkovski dedicou-se ento ao seu novo projeto, Andrei Rublev, terminado em 1966 mas proibido pela censura sovitica at 1971. Seu terceiro filme, Solaris, baseado no livro de fico-cientfica de Stanislav Lem, recebeu o Prmio Especial do Jri no Festival de Cannes de 1972. Trs anos depois, realizou O Espelho, um trabalho autobiogrfico que tambm teve problemas de distribuio na Unio Sovitica. Stalker, de 1979, e Nostalghia, de 1982, foram internacionalmente aclamados, abrindo caminho para sua derradeira obra, O Sacrifcio.

Alexander (Erland Josephson) um perplexo professor confessadamente inspirado no personagem Serebriakov, de Tio Vnia, de Tchecov. Desiludido, acredita que no existe qualquer perspectiva frente ao materialismo contemporneo, e refugia-se na contemplao de mapas e pinturas antigas. Para ele, a nica coisa a fazer sentido a existncia de seu filho (o menino Tommy Kjellqvist). No dia de seu aniversrio, v-se cercado por figuras singulares, como o carteiro Otto (Allan Edwall), que cita Nietzsche e coleciona eventos estranhos, a esposa (Susan Fleetwood) torturada por dilemas amorosos, e uma criada (Gudrun Gisladottir), a quem so atribudos poderes mgicos. Na televiso, um noticirio informa que acaba de acontecer uma catstrofe nuclear.

Num ritmo lento, pontuado por belos planos-seqncia, O Sacrifcio faz uma reflexo sobre temas caros ao cineasta russo. Em Solaris e Stalker, j aparecia o confronto entre o real e o imaginrio. Aqui, o sonho e a magia so as chaves para combater o princpio da realidade. Seja o ato de amor com uma possvel feiticeira ou a rotina de regar uma rvore morta, o pensamento mgico surge como a nica soluo frente ao cotidiano materialista. Assim, o verdadeiro sacrifcio de Alexander o incndio de sua prpria casa, invlucro de toda uma cultura.

A filmagem do incndio transformou-se, para Tarkovski e sua equipe, em outro sacrifcio. Depois de exaustivos ensaios para este plano-seqncia de seis minutos de durao, o diretor anuncia o incio da cena. Os responsveis pelos efeitos especiais fazem surgir as primeiras chamas. Os atores tomam posio. Tudo vai bem at que Sven Nykvist d o alarme: a cmara apresenta defeito e comea a perder velocidade durante a filmagem. Tarde demais para parar o fogo. A casa, que havia sido construda especialmente para o filme, teve que ser refeita em quinze dias para que se filmasse um novo incndio. Mas sem perder o entusiasmo, com a casa queimando exatamente como previsto no roteiro, Tarkovski conseguiu levar a cabo seu ltimo trabalho, um presente para os amantes do seu cinema. E para citar o carteiro Otto, "todo presente um sacrifcio".


pensamentos despenteados para dias de vendaval
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