o falecido mattia pascal
magine-se levando uma vida absolutamente aborrecida. Com uma mulher chata e uma sogra insuportvel. Com um emprego intil. Numa minscula e inexpressiva cidade. Ento morre sua me, pobre velhinha, seu ltimo vnculo afetivo sobre a face da terra. Voc pensaria em suicdio?
Talvez no tenha coragem de se atirar nas guas baruIhentas que banham sua cidade. Talvez prefira uma morte rpida sobre os trilhos ferrovirios. Mas, a caminho deste sacrifcio final, voce contempla um trem parado na estao local e constata que ele no se parece de modo algum a um carrasco. Suas janelas iluminadas, cada uma exibindo personagens em movimento, como se um trem no passasse de uma fila de telas de cinema, so o suficiente para que seu desejo de morte se transforme num desejo de viagem (e viajar no seria morrer momentaneamente aqui para ressuscitar logo depois em algum outro lugar?). Chegando ao seu destino desconhecido, voc procura sensaes desconhecidas. Meio por acaso, acaba entrando num cassino e, em poucos dias, j o feliz possuidor de uma valise repleta de dinheiro. Voc foi, viu e venceu. O novo e o desconhecido, que da sua cidadezinha natal pareciam monstros ameadores, no mais o assustam. Agora, voc se sente um novo homem. Com a sua inseparvel maleta de dinheiro, deve voltar casa como um vitorioso.
Mas imagine-se agora chegando de volta. H um enterro na cidade. Todos os seus amigos e parentes seguem o cortejo. Voc no consegue adivinhar quem o defunto, j que todos que lhe vm cabea seguem o caixo. Mas, curioso e prevenido, observa tudo de longe. Imagine ento (e no deixe de imaginar) que, ao chegar ao cemitrio, voc descobre que o cadver chorado o seu! Sim, todos pensam que voc morreu! Voc, que h poucos dias pensava em suicdio e agora tem uma valise preciosa nas mos. Voc olha para seus amigos e parentes (sua mulher est em prantos, quem diria?) e olha para a valise. E ento voc descobre que est livre de tudo aquilo que era motivo de aborrecimento. Que, com sua presumida morte e com todo o dinheiro que agora possui, voc tem tudo para comear uma nova vida, num novo lugar, com um novo nome. Agora, me diga, no timo imaginar tudo isso?
Pois esta histria imaginosa foi escrita por Luigi Pirandello em 1904, sob o ttulo de O Falecido Mattia Pascal e pode ser assistida, no cinema ou no vdeo, numa verso atualizada dirigida pelo italiano Mario Monicelli chamada As Duas Vidas de Mattia Pascal (Le Due Vite di Mattia Pascal), de 1984. A identificao do pblico com o protagonista, interpretado pelo sempre competente Marcelo Mastroianni, no dificil, graas a possibilidade de comear uma segunda vida, desejo que quase todos tivemos, temos ou teremos algum dia.
A histria, porm, no termina por a. Novas aventuras e desventuras (e estas ltimas sero maioria) acompanharo Mattia Pascal, que passar a chamar-se Adriano Meis mas que depois de algum tempo voltar ao seu velho nome. Se o personagem do livro de Pirandello possui esprito suficiente para elaborar, entre outras, a teoria de que o mundo seria mais feliz sem Coprnico (o que pode at nem ser verdade mas que demonstra claramente a erudio e o raciocnio apurado do Mattia Pascal literrio), j o protagonista do filme no passa de um medocre vivente, possuidor de um intelecto nada avantajado. Isto explicaria seu insucesso na nova vida, fugindo um pouco da concepo original de Pirandello. De qualquer maneira, o tema central, do paradoxo entre a essncia e a aparncia do homem, continua presente em As Duas Vidas de Mattia Pascal.
Mario Monicelli, autor de filmes marcantes como Os Companheiros e O Incrvel Exrcito Brancaleone, com sua narrativa simples e sbria, chega por vezes a decepcionar. As brincadeiras com a linguagem cinematogrfica que aparecem no incio de As Duas Vidas de Mattia Pascal (por exemplo: Mattia lembra-se que um personagem j havia morrido e ele instataneamente desaparece do flashback) so apenas um aperitivo para um banquete que no servido. Felizmente o consagrado argumento forte o suficiente para manter o interesse do espectador.
A histria de Mattia Pascal recheada de sutilezas, algumas pouco exploradas na verso cinematogrfica, como a significativa presena do jogo em sua vida alternatlva (que tambm no passa de um jogo), outras muito bem marcadas, como a escolha de um novo nome. Adriano Meis um produto hbrido originado da soma do nome do imperador Adriano, um vitorioso, com o sobrenome de um comerciante de caixes, aludindo no s origem da nova identidade mas tambm ao fracasso a que estava destinada.
Muitos espectadores, ao final do filme, j desiludidos com o destino do protagonista com o qual se haviam identificado, podero lanar dvidas sobre a verossimilhana de tal histria. Para responder a isto, ningum melhor que o prprio Luigi Pirandello, Prmio Nobel de Literatura em 1934: "a vida, graas a todos os deslavados absurdos, pequenos e grandes, de que se acha tranqilamente repleta, tem o inestimvel privilgio de poder eximir-se daquela estupidssima verossimilhana, qual a arte considera seu dever obedecer".
Mas agora imagine se...