burburinho

o sobrenatural em shakespeare - parte 2

teatro por Renato Modesto

Seres Elementais

Com uma origem fundada principalmente na mitologia grega e nrdica, os seres elementais foram, a partir da Idade Mdia, encampados pela magia e pelo esoterismo. Relacionados diretamente com a natureza, os elementais so considerados os princpios ou a alma dos elementos. Seus nomes gerais so: gnomos (elementais da terra), salamandras (do fogo), silfos (do ar) e ondinas (da gua). Os elementais tambm so bastante conhecidos com o nome de fadas. Shakespeare utilizou-se destes poticos personagens em duas de suas peas: O Sonho de Uma Noite de Vero e A Tempestade.

Em O Sonho de Uma Noite de Vero, eles tm uma participao fundamental na trama. Dois dos principais personagens da pea, Oberon e Titnia, so, respectivamente, rei e rainha das fadas. Quando entram em luta por causa de um determinado rfo que desejam para seus squitos, esses dois elementais utilizam-se de diversos recursos mgicos. Esta magia acaba por atingir tambm personagens humanos, ocasionando todas as divertidas reviravoltas da pea.

A ntima relao entre os elementais e a natureza concreta aparece de forma muito clara em trs dos personagens criados por Shakespeare nesta pea: Flor de Ervilha, Teia de Aranha e Gro de Mostarda. So fadinhas que do vida aos elementos que as nomeiam. O divertido Puck, criado de Oberon, guarda caractersticas mitolgicas, assemelhando-se a um stiro, mas descrito na pea como um gnomo que "assusta as donzelas, desnata o leite e faz com que a bebida no fermente". Quando gosta de um humano, porm, Puck o ajuda em seus trabalhos e lhe traz a boa sorte.

Em A Tempestade, o personagem Ariel, criado do poderoso mago Prspero, nomeado como um gnio areo ou silfo. Ariel, numa de suas vrias aes mgicas, comanda o vento e naufraga um navio que passa nas proximidades da ilha onde Prspero est confinado. D incio, assim, a uma trama romntica e fantasiosa.

Aparies Sobrenaturais

As aparies, mais demonacas do que divinas, esto muito mais relacionadas bruxaria do que religio. So seres horrveis, amedrontadores, que habitam o que a magia negra nomeia sub-planos astrais. Elas funcionam como um canal de comunicao entre as bruxas e o demnio. O principal exemplo so as grotescas figuras invocadas pelas feiticeiras de Macbeth, na Cena I, Ato IV: uma cabea vestindo um capacete, que incita Macbeth contra ser rival Macduff, baro de Fife; uma criana ensangentada, que profetiza que "ningum nascido de mulher pode molestar Macbeth"; uma criana coroada com um galho na mo, que lana a famosa profecia: "Macbeth s ser vencido quando o grande bosque de Birmam, subindo a alta colina de Dunsinane, marchar contra ele"; e, finalmente, a apario de uma fila de oito reis, o ltimo tendo um espelho na mo. Atrs deles, mais uma vez, o j conhecido fantasma de Banquo.

Monstros

H dois exemplos principais de monstros na obra de Shakespeare. Um fruto de um feitio. No caso, o homem com cabea de burro em O Sonho de Uma Noite de Vero. O outro exemplo, presente em A Tempestade, Calib, monstro disforme e selvagem, filho da terrvel bruxa Sicorax. O mago Prspero faz tudo para civilizar Calib, mas seus esforos so inteis. O personagem monstruoso permanece preso a sua animalidade e funciona como uma metfora clara da face irracional e instintiva do homem.

Crenas Religiosas

As crenas religiosas, notadamente as nascidas dos dogmas catlicos, esto presentes em toda a produo artstica do Renascimento. Shakespeare no foge regra e encontramos, em sua obra a crena em Deus e no castigo divino, a crena no Demnio e nos seres infernais, alm de vrias supersties ligadas religio. Um bom exemplo da crena catlica aparece em Hamlet quando o rei Claudius tenta inutilmente rezar, na esperana de purificar sua alma pecaminosa perante a Deus. Quanto crena na existncia do Demnio, o melhor exemplo aparece em Macbeth, quando o personagem principal teme pela sorte de sua alma ao afirmar: "Foi por nada que entreguei a prola de minha vida eterna ao inimigo comum do gnero humano". Assim como o Fausto, de Goethe, Macbeth tem a conscincia de que vendeu sua alma ao Demnio.

As supersties tambm aparecem de diversas formas, em vrias peas, normalmente relacionadas com criados e personagens de classe social inferior. Os nobres, entretanto, no escapam superstio e nas duas peas j citadas, encontramos bons exemplos: Hamlet tem uma boa oportunidade de matar o rei Claudius, mas desiste ao perceber que o monarca est rezando. Acredita que, se for morto nesse momento de prece, Claudius ir necessariamente para o Cu. E claro que Hamlet no deseja que essa beno recaia sobre o assassino de seu pai. Quanto a Macbeth, a superstio est ligada palavra "amm" (Cena II, Ato II). Quando vai assassinar o rei Duncan, Macbeth ouve o filho do rei sussurrar em meio ao sono: "Deus nos proteja!". O assassino tenta dizer "amm", mas no consegue pronunciar a palavra. Depois fica apavorado, julgando que esse acontecimento um sinal claro de que foi amaldioado pelo seu crime.

Bruxas, feiticeiros e homens com poderes mgicos

Na obra de Shakespeare, encontramos tanto o que poderamos chamar de magos brancos ou mgicos (como o caso de Prspero, de A Tempestade), como de magos negros, como as trs bruxas videntes de Macbeth ou a terrvel Tamora, rainha dos Godos, uma bruxa sensual e sdica, principal vil da tragdia Titus Andrnicus.

A bruxa mais impressionante de Shakespeare, porm, mesmo Lady Macbeth. Apesar de chamada por Macbeth por adjetivos muito carinhosos ("meu querido amor", "minha pombinha"), Lady Macbeth demonstra ser uma fiel seguidora de Satans. Em seu famoso monlogo da Cena V, Ato I, a "doce" senhora invoca, literalmente, os demnios: "Acorrei, espritos que velais sobre os pensamentos mortais!... Fazei com que eu transborde da mais implacvel crueldade... Convertei meu leite em fel, vs, gnios do crime, do lugar de onde presidis, sob substncias invisveis, a hora de fazer o mal! Vem, noite tenebrosa!... Envolve-me com a mais sombria fumaa do inferno!..."

Em Macbeth, A Tempestade e O Sonho de Uma Noite de Vero, encontramos tambm: poes e objetos mgicos, palavras mgicas ou encantamentos, maldies e benos. Alm disto, encontramos exemplos do que hoje chamaramos de poderes paranormais, como, por exemplo, o poder de cura atravs do toque, uma das habilidades do mago Prspero.

Interao Macrocosmo-Microcosmo

Em todas as principais tragdias de Shakespeare, encontramos uma interao entre as aes dos personagens principais e o Cosmos, a natureza como um todo. A boa conduta dos heris, a vitria ou a vingana justas tem o poder de colocar toda a natureza em seus trilhos corretos. Ms atitudes e pecados tambm influenciam o mundo como um todo, trazendo azar para os homens e desarmonia entre as foras da natureza, chegando at mesmo catstrofes naturais. Essa relao, herana da Tragdia tica (o melhor exemplo est em dipo-Rei, de Sfocles), permanece acentuadamente em Shakespeare. O equilbrio ou desequilbrio de um heri como Hamlet, Macbeth ou Otelo significa equilbrio ou desequilbrio na Dinamarca, na Esccia ou em Veneza como um todo. E mais at do que isso: o desequilbrio do heri influencia o mundo inteiro, as energias vindas do Cu, provocando um momentneo enlouquecimento de toda natureza. Como diz o nobre Ross em Macbeth, Cena IV, Ato II: "Os cus, agitados pela ao de um homem, ameaam esse sangrento palco...".

Orculos

Tanto na Tragdia tica quanto na Elizabetana, encontramos a presena de orculos, arautos da inexorabilidade do destino. A grande diferena que, na Tragdia Renascentista, existe um maior peso do livre-arbtrio humano. O heri , agora, capaz de interferir sobre as predies do orculo, modificando seu destino.

Elementos Mticos

A tradio greco-romana era a maior influncia cultural durante o Renascimento europeu. No estranho, portanto, que encontremos em Shakespeare, diversos temas e personagens claramente inspirados na mitologia. Cupido, o deus do amor, citado em O Sonho de Uma Noite de Vero. Em A Tempestade, encontramos sis, a mensageira dos deuses, Ceres, deusa da fertilidade, e Juno, deusa do casamento. Puck, embora seja descrito como um gnomo, tem a aparncia fsica de um stiro, com pequenos chifres e ps de cabra. Em Macbeth, h uma fantstica apario de Hcate, deusa da lua e rainha das Bruxas.

A utilizao de elementos msticos, sobrenaturais e religiosos apenas um dos muitos recursos utilizados por Shakespeare para despertar nossas fantasias e emoes. Porm, interessante perceber como, num mundo dessacralizado como o que hoje vivemos, estes temas permanecem vivos e interessantes. Talvez seja um indcio de que, sob a nossa armadura profana, racionalista e agnstica, permanea o encantamento da f, do mistrio e da fantasia. Palavras que, felizmente, permanecem intrinsecamente relacionadas ao grande encanto do teatro.


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