burburinho

a escada dos fundos da filosofia

livros por Gabriel Periss

Boa parte do blablabl de que acusam a filosofia culpa, no dos grandes filsofos, mas dos divulgadores que, por medo de banalizarem o pensamento profundo, complicam tudo desnecessariamente. O telogo e filsofo alemo Wilhelm Weischedel (1905-1975), discpulo de Heidegger, deixou-nos uma pequena amostra de como tratar os filsofos com todo o respeito, sim, mas com intimidade, com menos cerimnia, menos receio, e, por conseqncia, entendendo-os melhor. Seu livro A Escada dos Fundos da Filosofia, publicado pela Editora Angra com o apoio do Instituto Brasileiro de Filosofia e Cincia Raimundo Llio, relata detalhes da vida cotidiana de 34 pensadores. Entre eles, Plotino, Kierkegaard, Espinosa, Marx, Wittgenstein, Kant, Hume, Russel, Rousseau, Aristteles, Nietzsche, todos de carne, osso e sentimentos. Eles nos recebem em casa, de pijama, fumando ou bebendo, meio despenteados, com um ar (aparentemente) normal de quem olha o mundo com mais ateno do que ns. E ns, no incio meio tmidos, comeamos depois, por outro lado, a contemplar de perto suas manias, sua rotina de trabalho, seus problemas econmicos, suas doenas, e, claro, seus momentos de genialidade.

A explicao do pensamento de cada um deles torna-se mais compreensvel - ou pelo menos mais acessvel -, tendo como pano de fundo a realidade comezinha. David Hume (sculo XVIII), por exemplo, corrigia as cartas do patro (deixando-o furioso), numa casa de comrcio de acar onde trabalhava para sobreviver. Sobrevivendo, pde ento construir um monumento ao ceticismo que, na verdade, o incio do fim daquela adorao quase que irracional do iluminismo pela razo. Diante dos erros ortogrficos e sintticos do patro, Hume talvez experimentasse a mesma sensao de impotncia quando pensava na fragilidade do entendimento humano. "Toda filosofia", afirmava ele com uma estranha certeza (pois, afinal de contas, era um ctico), "resume-se compreenso da cegueira humana".

Um sculo antes, vemos Leibniz irritar-se quando, como bibliotecrio-chefe da biblioteca da corte de Hanver, via algum, "estranhamente", pegando livros emprestados. Este seu amor aos livros e ao conhecimento fazia-o tambm esquecer as prprias doenas e a trat-las como coisas externas a si mesmo - chegou a tentar curar-se de um furnculo aplicando-lhe um mata-borro! Leibniz concebia o universo como um todo e quis pens-lo e catalog-lo at os mnimos detalhes. Candidamente, acreditava que este era o melhor dos mundos, com cada coisa em seu lugar, mesmo os sofrimentos e dores da existncia. A teodicia que escreveu um dos maiores testemunhos do otimismo metafsico do ocidente.

No incio da misso filosfica grega, vamos encontrar Tales de Mileto, um comerciante bem-sucedido, um poltico atuante, um astrnomo atilado... e um solteiro convicto. Conta-se que vivia dando desculpas me para no se casar. Quando jovem, dizendo que ainda era muito cedo. Quando mais velho, dizendo que j era muito tarde. Queria dedicar-se contemplao filosfica do mundo, e dele a famosa e s vezes mal interpretada frase: "A gua a origem de tudo". Evidentemente que, tomando essa afirmao ao p da letra, estaramos muito aqum do que de fato quis dizer. Atolaramos numa suposta compreenso pr-cientfica do mundo, e nada mais. No, no se trata de uma viso primitiva ou mtica das coisas, mas de genuna metafsica: a gua significa o princpio uno, fluido e profundo das coisas que existem. Mais do que um materialista primrio, Tales foi realmente o primeiro grande construtor do que chamamos filosofia.

Dando um novo salto para a frente, at o sculo XIX, deparamos com Fichte, um professor compenetrado que, certo dia, censurou com firmeza a rebeldia e preguia de seus alunos. Em represlia, passaram a insultar a mulher do filsofo na rua e apedrejaram as janelas de sua casa. Cenas desagradveis que, para o filsofo, so fonte de pensamento: o que a liberdade humana? A liberdade do homem infinita? Os alunos so livres para no estudar? Os homens podem fazer o que lhes d na telha? A liberdade, conclui, no livre, isto , encontra-se desde sempre limitada ou, poderamos dizer, orientada pela conscincia moral. Devo fazer isso? No devo? E no se esquea a presena do acaso, que pode criar situaes de vida inesperadas. O prprio Fichte experimentou esses acasos, quando, por exemplo, publicou um livro que a editora, omitindo o seu nome, fez com que todos pensassem ser uma obra de Kant, bem mais famoso que o verdadeiro autor, o que contribuiu para o sucesso imediato do livro. Quando se descobriu a verdade, o discpulo de Kant tornou-se da noite para o dia um pensador do mesmo naipe.

Ainda mais prximo de ns, Wittgenstein (1889-1951) reassume a vocao filosfica como um novo Scrates. Seu quase desprezo pelos bens econmicos e sua vida austera (chegou a ser jardineiro num mosteiro) condio para poder pensar com independncia e profundidade. Muitas das suas aulas retomam o estilo dialgico, em que alunos e mestre abordam temas com a ousadia de quem o faz pela primeira vez. Isto, logicamente, um risco. Vrias vezes durante esses encontros, Wittgenstein (meio propenso depresso, verdade) diz coisas do tipo: "vocs tm um pssimo professor" ou "eu sou muito burro". No entanto, todos aqueles que o ouviram ou leram seus textos (ou as anotaes dos discpulos a partir de suas palestras) sabem que sua luta pela busca da palavra filosfica perfeita era um exemplo de amor. Amor estranho, pois seu sonho era que a filosofia morresse no momento em que descrevesse todos os problemas filosficos e estes, por fim, deixassem de ser problemas.

Fatos biogrficos, curiosidades, enfim, todo esse mundo real, de pessoas reais, de um Voltaire escrevendo uma das suas mais de 20.000 cartas, no fim da vida, dentro do seu castelo, com um squito de 160 serviais; de um Schopenhauer marcando suas palestras na mesma hora em que Hegel ministrava as suas, e amargurando-se com o prestgio do adversrio intelectual; de um belo Feuerbach casando-se com a filha de um rico fabricante de porcelana e, pelo menos at a falncia dessa fbrica, podendo ler, pensar e escrever com calma; enfim, todas essas histrias e curiosidades nos permitem captar melhor as linhas centrais da obra de cada um dos autores da grande enciclopdia do pensamento humano, compreendendo com nova lucidez a beleza e a fora da inteligncia humana. Compreendendo que eles eram incomparveis, mas tambm gente como a gente.


pensamentos despenteados para dias de vendaval
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