burburinho

duelos famosos

miscelnea por Nemo Nox

Para um cidado do sculo XXI, um duelo pode parecer um evento contraditrio e ininteligvel. Por um lado, difcil compreender a selvageria de tentar solucionar um problema fundamentalmente abstrato, o da honra, de forma inescapavelmente concreta, com um combate at a morte. Por outro lado, no fcil entender toda a etiqueta que envolve um duelo, as regras de combate, o elenco de apoio, a coreografia calculada - afinal, se o objetivo acabar com a existncia do adversrio, no seria mais simpels esquecer qualquer tipo de delicadeza e resolver o assunto da forma mais direta possvel? Questionamentos parte, os duelos foram, durante sculos, parte da vida (e razo da morte) de muita gente famosa.

Mesmo para o sobrevivente de um duelo, as conseqncias podiam ser grandes. O dramaturgo ingls Ben Johnson (1572–1637), por exemplo, rival de Shakespeare e autor da comdia Volpone, duelou em 1598 contra o ator Gabriel Spenser por alguma razo que no ficou registrada para a posteridade. Pela morte do adversrio, Johnson foi mandado para a priso, de onde s saiu com o artifcio de converter-se f catlica e doar todas as suas propriedades para a igreja.

Outro literato famoso com duelos no currculo foi o russo Aleksandr Pushkin (1799-1837), autor de Boris Godunov e de Eugene Onegin (que, profeticamente, inclua um duelo). Irritado com os rumores de que sua esposa Natalya o estava traindo, desafiou para um duelo o suposto amante, um oficial francs chamado Georges d'Anths, casado com Ekaterina, irm de Natalya. Pushkin j era um duelista experiente, mas a disputa de 1837 seria sua ltima. Atingido na barriga por um tiro de d'Anths, morreu dois dias depois do duelo.

Pushkin duelou por sua esposa, mas seus conterrneos Nikolay Gumilyov (1886-1921) e Maksimilian Voloshin (1877-1932) foram levados ao duelo por uma mulher imaginria. Corria o ano de 1909 e a revista russa Apollon comeou a publicar poemas da misteriosa baronesa Cherubina de Gabriak. Gumilyov, tambm poeta, imediatamente apaixonou-se e iniciou uma correspondncia amorosa com a baronesa, at que comearam a circular rumores que Cherubina de Gabriak era na verdade somente um personagem criado por uma desconhecida professora aleijada e outro poeta famoso, Voloshin. Furioso por ter sido enganado (e possivelmente ainda mais irritado por ter trocado juras de amor com outro homem), Gumilyov desafiou Voloshin para um duelo, a ser travado no mesmo local onde Pushkin enfrentou d'Anths. Voloshin, porm, no se sentia atrado pela idia de matar Gumilyov e tampouco tencionava se deixar assassinar. Chegou ao local dizendo ter perdido na lama uma de suas galochas e que no poderia duelar antes de a encontrar. Depois de um par de horas procurando inutilmente pela tal galocha, ambos concordaram em declarar trgua e o duelo nunca chegou a acontecer.

Enquanto na Europa os duelos mais famosos envolveram escritores, nos EUA foram os polticos que deixaram sua marca. Em 1859, por exemplo, o senador David C. Broderick (1820–1859) e o ex-juiz da Suprema Corte da California David S. Terry (1823-1889) cruzaram armas nos arredores de San Francisco. Broderick defendia o fim da escravido e Terry, ao no conseguir reeleger-se com uma plataforma escravagista, culpou Broderick pelo seu fracasso. Os nimos esquentaram-se e os dois partiram para um duelo. Broderick, porm, no esperou o final da contagem para disparar e atirou para o cho. Terry no foi to magnnimo e atingiu Broderick, que morreu trs dias depois.

Os duelos estadunidenses no se limitaram aos polticos menores. Em 1804, o vice-presidente Aaron Burr (1756–1836) duelou com o ex-secretrio do Tesouro Alexander Hamilton (1757–1804), por causa de um suposto insulto divulgado por um jornal. Hamilton alegou no se lembrar do incidente, recusou pedir desculpas e aceitou o desafio para o duelo que resultou na sua morte. Dois anos depois, Andrew Jackson (1767–1845), que viria a ser o stimo presidente dos EUA, duelou contra um certo Charles Dickinson, que teria insultado sua esposa. Dickinson morreu mas Jackson ficou com uma bala alojada to perto do corao que nunca pode ser extrada.

Vrios escritores lusfonos foram tambm protagonistas de duelos. Em 1889, quando o poeta brasileiro Olavo Bilac (1865-1918) resolveu sair do jornal A Rua, o editor Joo Carlos Pardal Mallet, ofendido, desafiou-o para um combate com espadas. O duelo teve que ser adiado algumas vezes, porque a polcia os vigiava, e quando finalmente conseguiram se enfrentar Bilac atingiu Mallet rapidamente na barriga, o que, segundo as regras, deu fim ao duelo. Trs anos depois, Bilac envolveu-se numa grande discusso pblica com o escritor Raul Pompia (1863-1895). Usando um pseudnimo que todos sabiam ser seu, escreveu sobre Pompia: "Ele sofreu amolecimento cerebral de tanto masturbar-se contando as tbuas do teto." Pompia revidou tambm por escrito: "Bilac um tipo alheado do respeito humano, marcado pelo estigma do incesto." Para resolver a briga, acabaram marcando um duelo de espadas que nunca chegou a acontecer. Pompia continuou cultivando inimizades e acabou suicidando-se trs anos depois.

Euclides da Cunha (1866-1909), autor de Os Sertes, tem sua morte freqentemente atribuda a um duelo com o amante de sua esposa. O combate, porm, aparentemente teve pouco da organizao e do cavalheirismo dos duelos. A crnica da poca conta que em 15 de agosto de 1909, um domingo, Euclides da Cunha foi at a casa de Dilermando de Assis, o aspirante do Exrcito com quem sua esposa Ana estava vivendo depois de o abandonar, e anunciou, j com um revlver na mo: "Vim para matar ou morrer!" Ao ver Dilermando comeou a disparar, ferindo no s o militar mas tambm seu irmo, que foi atingido na coluna vertebral e ficou paraltico. Dilermando revidou e no tiroteio que se seguiu Euclides recebeu uma bala fatal no pulmo direito. Dilermando foi julgado e absolvido por legtima defesa.

Do outro lado do Atlntico, talvez o mais famoso duelo entre escritores tenha sido travado entre o poeta Antero de Quental (1842-1891) e Ramalho Ortigo (1836-1915), co-autor com Ea de Queiroz de O Mistrio da Estrada de Sintra. 1865 foi um ano de disputas acaloradas nas letras lusitanas, o que ficou conhecido como "a questo coimbr". O poeta cego Antnio Feliciano de Castilho publicou um opsculo chamado Bom-senso e Bom-gosto, no qual acusava um grupo de jovens poetas, do qual fazia parte Antero de Quental, de obscuridade e exibicionismo. Quental, que chamava o grupo de Castilho de "escola do elogio mtuo", revidou com um folheto onde ridicularizava a poesia de Castilho, chamando-a de ftil e insignificante. Tefilo Braga entrou na briga com mais um folheto, Teocracias Literrias, dizendo que Castilho s era famoso por ser cego. Quental voltou carga com A Dignidade das Letras e Literaturas Oficiais, onde alm de defender uma literatura voltada a temas importantes mencionava tambm os cabelos brancos de Castilho. Ramalho Ortigo, que gostava de polmicas, escreveu o opsculo A Literatura de Hoje dando um puxo de orelhas nos "rapazes inconvenientes". Os nimos exaltaram-se ainda mais e l foram Quental e Ortigo se enfrentar em duelo. O combate travou-se na cidade do Porto, com espadas, e Ramalho Ortigo foi derrotado com um ferimento no pulso. Anos depois, j em Lisboa, os dois duelistas acabariam por tornar-se amigos.

Das letras para os nmeros. O matemtico francs variste Galois (1811-1832), menino prodgio responsvel pelas bases do que ficou conhecida como a teoria de Galois, ramo da lgebra abstrata, morreu num duelo aos vinte anos de idade. Republicano numa poca politicamente tumultuada, Galois foi preso vrias vezes acusado de conspirar contra o rei (na verdade, sua conspirao no passava de atos pblicos de desafio autoridade, como brindar jocosamente ao rei com uma faca na mo ou usar uniformes proibidos da Guarda Nacional). No dia 30 de maio de 1932, dois dias depois de sair mais uma vez da priso, Galois travou seu duelo fatal com Perscheux d'Herbinville. O verdadeiro motivo incerto, alegadamente envolvendo uma certa Stephanie-Felice du Motel da qual estaria enamorado mas possivelmente sendo somente um pretexto para encobrir as razes polticas da sua morte.

No Canad temos ao mesmo tempo exemplos de um dos mais violentos duelos da histria e de um dos menos violentos duelos da histria. Em 1819, William Caldwell, mdico do Montreal General Hospital, e Michael O'Sullivan, membro da Assemblia Legislativa, enfrentaram-se com pistolas depois de Caldwell ter chamado O'Sullivan de covarde. Aps trocarem tiros cinco vezes, os dois ainda estavam vivos: O'Sullivan foi atingido trs vezes, uma delas no peito; Caldwell teve o brao parcialmente destrudo por uma bala e o colarinho perfurado mostrava que outra bala passou-lhe muito perto do pescoo. Nenhum deles morreu por causa dos ferimentos, e quando O'Sullivan faleceu vinte anos depois foi encontrada uma bala alojada junto sua coluna vertebral. Em 1836, Clment-Charles Sabrevois de Bleury e Charles-Ovide Perreault, dois polticos canadenses, tambm marcaram um duelo com pistolas por causa de insultos previamente trocados. No momento decisivo, porm, seus amigos os convenceram a apertar as mos, pedir desculpas simultaneamente e aceitar as desculpas tambm ao mesmo tempo, uma soluo que resolveu o problema da honra e gerou um dos duelos mais pacficos que conhecemos.

Ainda na linha dos duelos sem vtimas, temos o famoso confronto entre o Arthur Wellesley, primeiro Duke of Wellington (1769–1852), e George Finch, nono Earl of Winchilsea (1752-1826). Apesar de suas posies conservadoras como primeiro ministro da Inglaterra, Wellington permitiu a eleio para o parlamento de um proponente da emancipao catlica, um escndalo para a maioria protestante. Winchilsea acusou-o de tramar a destruio da constituio protestante e foi imediatamente desafiado para um duelo. O confronto foi marcado para o dia 21 de maro de 1829, no Battersea Park. Wellington disparou sua pistola intencionalmente para longe de Winchilsea, que, no se sabe se por susto ou por nobreza, disparou para o ar. Mais tarde, Winchilsea acabou escrevendo uma carta de desculpas a Wellington.

Para terminar, um duelo onde uma mentirinha e um pouco de psicologia foram mais eficazes que a habilidade com as armas. De passagem por Virginia City, no estado de Nevada, em 1864, o escritor Mark Twain (1835-1910) envolveu-se em mais uma discusso atravs de artigos de jornal, desta vez com James Laird, editor do Daily Union. Os insultos foram trocados e seu amigo Steve Gillis convenceu Twain que deveria desafiar Laird para um duelo. O problema era que o criador de Tom Sawyer e Huck Finn no sabia usar uma pistola. Gillis ento levou Twain para uma sesso de tiro, na qual o escritor no conseguia acertar qualquer alvo. Tentando mostrar como deveria fazer, Gillis, excelente atirador e experiente duelista, pegou a pistola e atirou num passarinho que passava por ali, arrancando-lhe a cabea. Para sorte de Twain, logo em seguida passou pelo local um amigo de Laird, que viu o passarinho decapitado e a pistola j de volta s mos de Twain. Gillis marotamente contou que j era o segundo pssaro que seu colega acertava a uns trinta metros de onde estava. A notcia no demorou a chegar aos ouvidos de Laird, que desistiu prontamente do confronto. Resta saber se foi isso mesmo que aconteceu ou se somente mais uma histria aumentada e embelezada pela pena afiada de Mark Twain.


pensamentos despenteados para dias de vendaval
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